domingo, 5 de setembro de 2010

Reparos

 Eu pensei que o meu espelho havia se quebrado - eu estava errado. Na verdade, eu quebrei o espelho. Parece uma metáfora inútil mas não é, agora resta somente metade do espelho da parte interior do meu guarda-roupas. Os pedaços cairam virados para baixo; por algum motivo desconhecido eu os virei para cima, eles refletiram a figura colossal e grotesca de um homem irado. Aquele homem tinha o semblante forte e agressivo, sua barba serrada escondia parte do seu rosto, a visão por baixo era assustadora pois não dava para definir muito bem quem estava olhando e quem era o observado, nos seus olhos brilhavam a angustia e o arrependimento. Por um momento tive medo de mim mesmo, ao me enxergar como aquela figura sinistra. Lógicamente minha expressão era a mesma do reflexo, mas este detalhe não impediu que eu tremesse diante da minha outra postura - um monstro interior explicito em destroços de um espelho.

 Tendo agora pedaços de um espelho nas mãos, só me restava desfazer de todos aqueles cacos cortantes. Os jornais que embalaram cada caco revelaram um pouco da minha boa intenção em não machucar o pobre gari que recolheria o lixo na próxima segunda-feira. Mesmo depois de jogar fora todos os grandes pedaços, os pequenos fragmentos continuavam lá, me fazendo lembrar da parte estranha de mim mesmo.
 O trabalho de limpeza durou cerca de uma hora, liguei o computador para ouvir alguma músca enquanto me desfazia dos meus estragos. O que deveria ser uma tarde de postagem no TRAPO, tornou-se uma caixa de ferramentas sobre a cama, me auxiliando no posicionamento de um novo espelho; ou melhor dizendo, o que sobrou dele. A bagunça ficou maior ainda, mas eu não me importava muito pois sabia que teria que fazer aquilo inevitavelmente. O ritmo dos meus movimentos tornaram-se semelhantes às batidas do rock ao fundo, e nenhuma raiva passei durante todo esse processo. A raiva que me fez destruir uma coisa me anestesiou de tal maneira que nada mais podia me tirar do sério. De forma revoltante e bastante contraditória, o espelho que deveria ser reparado por mim acabou reparando minhas falhas, dando-me uma lição de paciência e boa vontade, daquelas que nunca recebi por ninguém.
 Pouco depois lá estava meu novo espelho. Posicionado corretamente, sem riscos de desabar ou escorregar, porém cheio de manchas e marcas de dedos por todos os lados. Aquela tarefa já estava me cansando, mas eu sabia que não podia parar por ali; meu espelho dependia de mim assim como eu dependo dele. Fiz alguns últimos reparos, limpei-o com um produto e um pano e em seguida guardei as ferramentas. Ao olhar de volta para adentro do meu gurda-roupas, senti um ar de nobreza e renovo, um sentido anormal relacionado a algo tão simples, como supervalorizar um sorriso ou o ar de nossas narinas.
 Meu reflexo agora estava diferente, o ser irado e amedrontador havia ido embora junto com os cacos meiores; no lugar dele, alguém com o rosto cansado pedindo por um banho fresco. Certamente, aquele espelho deveria ser quebrado; não para que me desse o forçante trabalho de concertá-lo, mas para que pelo uma vez durante cada período da minha vida, eu possa ver de outro ângulo, e possa reconhecer, aquele que eu sou por muitas vezes mas não quero admitir. Se vou mudar meu jeito, minha personalidade ou caráter por isso, eu não sei. Mas uma reflexão com certeza será feita, e algo novo nascerá.

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