O ano virou. Não sei se durante o espumante ou a tequila, mas aconteceu. Viraram copos, taças e garrafas. Do limão abridor de pernas à melancia tóxica. Salve o maracujá! Virou a cabeça de quem tomou, apagou e pensou que jamais retornaria. Quem viu babaca virar fera, assistiu ao troco bem dado e ao fim da noite virar o fim do ano e de muitas outras coisas destinadas a terminar.
Para toda ação, reação é estar incrivelmente capaz de chegar ao límite depois do erro e das lágrimas.
É amanhecer em grande estilo. Conseguir estar sozinho. Sentir frio e não sentir nada. Saber que o horizonte trêmulo à frente é tão instável quanto as lufadas. Linhas brancas rasgavam o céu pela manhã.
O rosto de cada uma daquelas estátuas humanas mal iluminadas representavam uma angústia particular em contraste com as realidades da noite anterior. Medo do nada e nenhuma certeza, talvez. Bocas inquietas para conversas paralelas. Pulamos das risadas saudáveis, regadas à boa comida e bebida leve, para os assuntos degradantes. Aprender o valor do silêncio valeu a pena nesses últimos instantes. Não faria sentido expor contradições e argumentos. Há vontades que se vão em delírios repentinos e reflexões dadas ao longo de minutos curtos. Conclui-se que, para um anfitrião, não é fácil ser versátil.
Duas caravanas nunca couberam num mesmo espaço. Logo me despeço, agradeço presença e digo que não há por quê se desculpar. Espero que voltem - quando eu convidar. Durante o rodeio forçado, preparo discurso e paciência. Tantos demônios para enfrentar num mesmo dia... Confraternização universal chocando-se contra minha amarga discórdia interna. Por fim, cansaço, febre e insônia.
A manhã seguinte trazia consigo um sorriso cínico marcando o calendário. Maldição. Dores e demais manifestações cruéis traziam à tona verdades revoltantes. Por que corremos tanto atrás do vento se, mesmo no limite das forças, ele se mantém protegido de nós? Nas mãos ou na mente, a preguiça é o mais comum e saboroso crime. A doença criada à partir de nossa diagnose vira pecado por corpo mole. Se hoje não quero levar à sério, hoje não posso levar a sério. Simples. Não hoje. Cortadas sejam as línguas hipócritas que associam desistência à um caráter fraco. Muito material fora desperdiçado e todos esses falsos moralistas, ainda que estivessem abraçados à foice da morte, também desistiriam de morrer.
Lembre-se daquele horizonte. Mesmo depois de outra noite perdida pelos mesmos motivos, há ânimo em retomar a vida, ainda que o três incomode - ou o que se perdeu nos últimos dois. Talvez nada; e também não haja ganhos até aqui, a não ser o agravante desses infortúnios. Bom saber que não estamos sozinhos; e o que não faríamos sem aqueles que carregam nossa dor como a sua própria. Parte dessa lógica é famíliar e não falha, pois é essência que sobrepõe o sangue. Entretanto, existem ruas que o acolherão melhor que tua casa, e luas opostas para os teus salvadores. Por fim, nenhum requinte deste vocabulário seria capaz de retribuir um carinho sincero em horas precisas. Quem tem alguém, tem motivo para ser feliz.
Um passeio final pelo terceiro dia até a chegada mais esperada desde o falso presságio maia. O silêncio, o escuro e a ausência são companheiros indispensáveis àqueles que realmente amam sua vida e seu espaço. Há tempos não estivera reunido comigo mesmo para descarregar certas infelicidades e reconstruir motivação. Não há nada mais puro que o sorriso de um homem solitário. Ele não precisa mostrar aos outros sua satisfação. Está bem consigo. Houve uma saudação alegre até os preparativos do descanso.
O desconforto fora baleado pela surpreendente ação de alguém que não deixa de amar, mas ama à sua própria maneira. Bom café ao paladar acompanhando mais anagésicos. Dia de reorganizar e aguardar um sinal. Reprimir anseios fúteis e exprimir vontades absurdas. Dormir com uma gata e acordar arranhado. Ficar abobado. Sentir arder e ver a dor como mais doce triunfo de prazer. Sadomasoquismo virou ritmo.